sábado, 18 de agosto de 2007

ONDE ESTAVA

- E ai amiga, por onde andavas?
- Não andava, dormia.
Dormi. Hibernei em uma viagem interna que jamais havia vivido antes. Encontrei imagens esquecidas e empoeiradas. Refiz caminhos, me vi desnuda em uma sala de espelhos.
Meu gato e minha cachorra não cansam de me olharem de canto de olho, totalmente perdidos com as minhas mudanças e loucuras, ou estou trocando caixas de lugar, ou paralisada, muda, olhando cada pedaço de mim.
Retorno ao meu trabalho e a mim mesmo, mulher que eu gosto, cheia de contradições, mas muito inteira nas minhas escolhas das quais sou fiel e um tanto irracional para alguns.
Não sei viver sem o amor. E ele sempre está lá em tranqüila certeza de sobrevivência. Contra tudo e contra todos, ele se assentou na minha carne e nos meus cheiros, como parte de mim. Meus passos determinados soam em tons de bolero onde dança comigo.
Mas não posso impedir as transformações, este remexer de areias que em blocos se reacomodam e não perdem sua mania de voar ao sabor do vento. Sobrevivendo a dor venho me criando e recriando, desfazendo velhas costuras. Tem momentos que me sinto como num SPA elegante, os períodos de banhos quentes perfumados se misturando à camas de tortura com choques elétricos e sucessivas loucuras.
Cada minuto de sobrevivência é acompanhado pelo silêncio, premio pela rebeldia de teimar em ser feliz.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

POIS É...AQUELA HISTÓRIA DA CARTA.

POIS É...AQUELA HISTÓRIA DA CARTA.


Não queria nem lembrar desta história, mas sempre vem alguém com aquela perguntinha...
- Não te lembras?
- Não!
- Daquela vez da carta?
E ai vem tudo novamente à tona, começam a passar na memória todas aquelas imagens terríveis que não posso esquecer. Eu sei que era jovem ainda, foi exatamente quando vim morar aqui nesta gaveta. Vocês nem podem acreditar mas tive experiências inusitadas por aqui. Conheci gente de todo tipo e procedência, desde os mais simples aos mais intelectuais.
Quando cheguei aqui eu era só, ninguém mais povoava meu território, mas com o passar do tempo foi chegando a poeira e junto com ela iniciaram as primeiras colônias de fungos e todos aqueles ácaros. Vocês podem imaginar?
Até quando percebi um movimento bem no canto esquerdo do fundo da gaveta. Surgia ela, toda nova, se espichava e estirava seus pequenos braços para nascer. Chegava naquele instante ao mundo D. Amália da Silva Barata. Olhou-me toda assustada, e com uma voz melosa perguntou, onde estou?
Finalmente alguém tinha surgido para preencher o vazio da minha vida. Sem saber com quem exatamente eu falava, respondi:
- Você está numa gaveta. Até sei que esta é uma peça de uma escrivaninha elegante, que fica em um importante escritório, onde se criam coisas inimagináveis e belas.
À parte digo a vocês: não era hora de contar a ela toda a verdade. Verdade de que a realidade não tinha nada de tão importante nem elegante e a única coisa criada falava com ela e morava na mesma gaveta. Desta forma creio que delineei os primeiros passos de D. Amália tão importante personagem nesta historia..
Posso dizer a vocês que se passaram cinqüenta gerações desta família em minha vida. Surgiram grandes indivíduos, e outros tantos milhares de medíocres colaboradores. Mas jamais poderei esquecer da ilustre senhora Dona Amália da Silva Barata, matriarca desta estirpe, responsável por tão pródigas gerações.
Voltando a história da carta....Há, esta inesquecível e ignóbil carta ! Uma desgraça , meu amigo, para não dizer a maior de todas as desgraças.
Como sabem ...Minha vida deveria estar na rua, quem sabe nos palcos, passeando pelas mãos de uma verdadeira multidão de pessoas, mas minha fortuna me mantinha ali preso àquela gaveta vivenciando a história daqueles pequenos personagens que dividiam sua sorte comigo.
Voltando a novela da malfadada carta...Um dia abriu-se a gaveta. Os primeiros raios de luz cegaram a todos os moradores. Com o olhar estupefato percebi que se dirigia ao interior de nossa gaveta a mão de meu autor. Vocês não podem imaginar que tão grandioso momento, finalmente eu sairia à luz, finalmente eu poderia viver a glória a qual fui criado. Minha cabeça rodava e meus pensamentos se sucediam como em avalanche. As lágrimas enchiam meus olhos, turbava minha vista.. Oh Deus!! Que felicidade!
Neste instante percebi ainda com os olhos nublados pelas lágrimas que em sua mão havia uma carta, e como num átimo de segundo tudo pode acontecer a carta foi jogada na gaveta seguida de um grande pacote. Fechou-se a gaveta novamente.
Não podia entender direito o que se passava.
Aos poucos meus olhos, marejados de lágrimas e cegos pela luz foram se adaptando a nova escuridão, olhei ao redor da carta que estava bem ao canto e logo percebi que se dirigia ao meu autor, pude lê-la:

Prezado Sr, Autor

Recebemos o manuscrito anexo e informamos que o mesmo foi rejeitado por nossos editores. Mesmo assim lhe encorajamos a enviá-lo em outra oportunidade quando tivermos maior disponibilidade financeira.
Atenciosamente
Editores.

Era a morte! Mais cem anos de gaveta tinham sido determinados para mim. Não mais sonhos, nem mais ilusão. Meu mundo vinha a baixo. Se eu não morria, pois não se mate assim como assim um personagem, eu me sentia involucrado em minha sorte. Nada poderia ser pior. Meu Deus! Nada poderia ser pior!
Poderia...
Olhei o grande pacote que tinha sido jogado ao fundo e percebi que era o manuscrito de minha novela, olhei mais atentamente e não pude acreditar no que meus esbugalhados olhos me mostravam. Embaixo do papel pardo, saindo por entre as cordas que o amarravam, vi um pequeno braço e reconheci aquele anel. Jazia ali Dona Amália da Silva Barata. Minha grande companheira, respeitável senhora e dona de uma história inigualável.
Meu mundo ruiu, não sabia o que pensar...
Percebem senhores, porque não posso nem pensar naquela amaldiçoada carta?
Ali se iniciava a maior solidão já vivenciada por Pessoa.